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Jacque Sato fala sobre representatividade amarela na TV; leia o manifesto

Felipe Pinheiro

De Splash, em São Paulo

01/10/2020 04h00

Apresentadora Jacqueline Sato divulgou um manifesto a Splash em que fala sobre representatividade oriental na TV e como Danni Suzuki a ajudou a correr atrás de seu sonho para ser atriz.

A seguir, leia o manifesto na íntegra:

Eu sou Jacqueline Hikari Santos Sato e estou muito feliz de estar aqui hoje falando com vocês.

Pra começar, quero convidar vocês a fazerem um exercício comigo. Fechem os olhos, e imaginem as personagens das sinopses a seguir:

"Bia é a atriz de cinema mais famosa do mundo. Suas fotos aparecem nas capas de todas as revistas e qualquer movimento que faça o mundo todo fica sabendo. Mas a sua vida amorosa é totalmente inexistente

Imaginaram? Legal! Agora lerei a descrição de uma outra personagem e peço que também imaginem como ela é:

"Juliana, 31 anos, sempre amou música, já sonhou em ser cantora, mas hoje, o mais próximo que chega do palco é quando vai servir as mesas VIP do bar de Jazz onde trabalha em São Paulo."

"Uma princesa de um reino distante, tem o dom de viajar no tempo. Sem saber que tinha este poder, toda vez que isso acontecia, ela pensava que era um delírio, um sonho. Mas um belo dia?"

Pronto, acho que já deu pra imaginar a princesa, né? Agora eu pergunto, quem de vocês imaginou uma atriz amarela interpretando algum desses papéis?

Por que não? Será que é porque, pouquíssimas vezes, se viu pessoas com características fenotípicas amarelas em obras audiovisuais? Eu acredito que sim.

Mas falta de representatividade étnico-racial tem uma raiz muito antiga, se encontra no final do século XV, quando o homem branco "descobriu" outros povos, "conquistou" novos territórios, matou muita gente, e suprimiu as culturas que nestas terras existiam, desumanizou o "outro", se colocou como superior e melhor do que este "outro. E justamente, porque os brancos colonizaram e exploraram muitos povos, eles detêm até hoje o poder e muitos dos privilégios que os descendentes dos outros povos não têm. Continuam aí ocupando hegemonicamente os lugares de maior prestígio, enquanto os povos racializados precisam batalhar, e muito, para conquistar o direito simplesmente viver de acordo com seus costumes, precisam lutar para não sofrerem discriminação, precisam se unir e se desdobrar para terem o direito de serem ouvidas, de terem suas culturas vistas e valorizadas, assim como, terem sua aparência física aceita, e tida como bela também.

E eu sei que esse colonialismo branco atravessa as diversas questões étnico-raciais, de gênero, e as questões sociais. E os povos mais oprimidos são, sem dúvida, os indígenas e os pretos. Mas, como eu só posso falar com propriedade da minha própria experiência, vou me usar de exemplo. Mas gostaria que através desta visão micro, a gente olhasse para o macro. Sempre.

Vamos agora para o Sec XX, no início dos anos 90.

Quero que conheçam a história da Jacque de 5 anos de idade. Nessa época, na minha ingenuidade de criança, eu rezava pro papai do céu todos os dias pra ser diferente: pra ser loira de olhos azuis. Pois é? estranho, né? Por que eu não gostava de quem eu era? Por que eu tinha essa vontade?

Eu adorava brincar de bonecas, mas todas, desde a primeira que eu tive eram loiras de olhos azuis. Eu também adorava cantar e dançar, mas na TV a "Rainha dos baixinhos" não se parecia nada comigo. As mulheres que eu achava bonita, que estampavam as capas de revistas, que brilhavam em filmes e novelas, e até mesmo as minhas princesas preferidas dos desenhos animados, eram assim: brancas, loiras, de olhos azuis. Até os anjinhos do teto da igreja e da árvore de natal eram assim.

Eu estava errada em querer ser diferente? Ou na sociedade na qual eu nasci é que não tinha espaço para a diversidade?

Foi nessa mesma época, aos 5, que eu fui pra escola pela primeira vez, adivinha: eu era a única que tinha "olhos puxados".

Abre parênteses: Por que esse termo? Quem está puxando o olho das pessoas que tem esse formato de olho específico?Talvez seja mais uma herança que carregamos daqueles brancos "desbravadores" que nomearam e julgaram o que, para eles, era diferente. E aí escolheram nomear do formato de olho que não era igual ao deles de "puxado" ou "rasgado".

Foi nessa época que eu comecei a "falar pra dentro", a deixar de ser espontânea. A sentar sozinha na hora do lanche. E a experienciar pela primeira vez esta sensação de não-pertencimento. Que seria algo recorrente ao longo da minha vida.

Quando você sente isso, você tem medo de falar, você tem medo de fazer algo que te faça se sentir ainda menos pertencente do que aquilo que sua condição física já parece impor. Você duvida de si mesma. Você quer ser aceita, amada, reconhecida, como todo ser humano quer. Mas por mais que você queira, você não tem coragem de arriscar estratégias para interagir e tentar ser aceita pelos amiguinhos. Então, eu ficava sentada sozinha. Por mais que eu quisesse pertencer, eu preferia ficar quieta.

Por isso, assei grande parte da infância ouvindo: "Não dá pra te escutar" , "Para de falar pra dentro, menina. Fala para fora."

Aos 7 anos eu descobri que papai do céu nunca ia poder me dar o que eu tava pedindo. Então comecei a desejar que se eu não podia ser branca, loira, de olhos azuis, que os meus filhos pudessem.

Nessa mesma época, algo em mim mudou, do dia para a noite. Exatamente nas pálpebras, uma das características fenotípicas amarelas mais marcantes. Minhas pálpebras que já eram vistas como diferentes, agora, eram diferentes uma da outra.

E aí, se eu já sentia que me olhavam diferente, agora me olhavam diferente por mais um motivo. Se eu já me sentia estranha, agora me sentia ainda mais estranha. E feia. E cada vez mais distante da princesa, dos anjinhos, ou dos meus sonhos. E triste por ter este "defeito", que durante anos nenhum médico conseguiu acertar o diagnóstico. Minha pálpebra esquerda inchava e desinchava, aleatoriamente. Uns dias mais, outros menos. Era mais um "defeito" que me tornava ainda mais distante daquilo que eu considerava belo. Acho que levou uns 3 anos até que um médico, finalmente, me dissesse que se tratava de uma blefarocalasis, uma doença super rara de se ver em crianças. Ah, e ele disse também que o aspecto pioraria, pois os inchaços tornariam a pele fina e flácida e ela cairia, tapando parte do meu globo ocular. E que não tinha nada a ser feito. Talvez uma plástica no futuro, quando os inchaços cessassem. Quando? Não se sabe ao certo. Em muitos casos, isso acontece no final da puberdade.

Imagina só como não foi a minha puberdade numa sociedade onde era comum fazer piadas com gays, gordos, pretos, amarelos, e o "normal" era dar risada. Eu, particularmente, nunca achei graça. Eu nunca gostei que zoassem os outros. E eu morria de medo que me zoassem. Principalmente, eu tinha medo do que falariam dos meus olhos. Quais seriam os apelidos horrorosos eu poderia ter por conta desta minha assimetria? Eu mexia na minha pálpebra, ficava tentando visualizar como seria se eu não tivesse tido aquilo. Aliás, isso demorou muito para passar. E eu achava que eu era a única criança que queria fazer uma blefaroplastia, eu desejava ansiosamente por isso, e achava que era só eu (afinal de contas, eu tinha uma doença, um "defeito"). Mas pouco tempo atrás, descobri que não. Mesmo meninas e meninos que não tinham tido doença alguma, e que não tinham "defeito" nenhum, queriam muito que suas pálpebras fossem diferentes. A maioria das pessoas amarelas com quem já conversei, querem ou já quiseram fazer a blefaroplastia para ocidentalizar os seus olhos. Para criar a tal dobrinha nas pálpebras que as ocidentais tem. Não é chocante?

Na Coreia do Sul, por exemplo, é comum os pais presentearem suas filhas adolescentes com esta cirurgia plástica, afirmando que isto as tornará mais bonitas e que as ajudará a se inserirem no mercado de trabalho. Eu li o relato de uma mãe que obrigou sua filha de 12 anos a fazer a tal cirurgia. O absurdo não pára por aí. Alternativas à cirurgia plástica foram criadas, como o adesivo para criar a tal dobrinha. As pessoas grudam um adesivo aqui, e algumas chegam a recomendar que se use por 22h por dia para "treinar" a pálpebra a conseguir ficar neste formato mesmo quando não estiverem usando tal adesivo. Tem noção? O dia inteiro com uma cola na sua pálpebra. E a outra alternativa, também bizarra, são os óculos de pálpebras. Uma armação que se encaixa no nariz e atrás das orelhas, como se fossem óculos. Só que ao invés de lentes, há fios de Nylon que se encaixam por cima do globo ocular forçando a pele a permanecer daquele jeito antinatural desejado pela pessoa.

Haja ressignificação e descolonização das nossas subjetividades para que o que é "diferente" do branco se aceite e seja aceito, se ame e seja amado, se valorize e seja valorizado. E pra mim, é quase como o lance do ovo e da galinha: "quem nasceu primeiro?". Como eu eu vou me amar, me valorizar e me aceitar, se no mundo, fora de mim, eu não vejo ninguém que se pareça comigo sendo valorizada? A batalha se torna bem maior.

Todo ser humano se desenvolve sendo influenciado pelas referências que têm a sua volta. Começando pelos pais, a família, depois a escola, os amiguinhos, a cultura, aquilo que se vê, na TV, no Cinema ou, hoje, no celular. Tudo, seja a arte considerada mais elevada, ou a propaganda. Tudo isso nos influencia enquanto sujeitos, e tem impacto na nossa subjetividade. E é aí que entra a importância da representatividade.

Por incrível que pareça, essa menina tímida e quieta, no fundo, sonhava em ser cantora, em ser atriz. Mas eu quase nunca tinha via ninguém como eu ocupando estes espaços, seguindo estas carreiras e sendo bem sucedida.

E, claro, eu encarava minha aparência como mais um obstáculo. Era um sonho tão, tão distante que eu comecei a acreditar que era impossível. Ou até, ridículo.

Mas isso não era à toa. A primeira novela brasileira foi ao ar em 1951. Somente 35 anos depois, em 1986, houve a presença de uma atriz brasileira amarela na TV. Essa atriz pioneira é a Cristina Sano, e a novela era "Roda de Fogo".

Houve outras novelas, outras atrizes e atores amarelos na TV, mas quase sempre em papéis secundários, nada relevantes, e muitas vezes, estereotipados. Por isso, não chegaram a marcar ou causar identificação em ninguém. De quantos vocês lembram?

Foi nesta realidade que eu cresci, e ao invés do meu sonho ir crescendo junto comigo, ele foi se desnutrindo. Como uma semente em terra seca.

Se o sonho fosse uma semente, ao ver alguém parecida comigo, conquistando aquilo que um dia eu gostaria de conquistar, essa semente seria regada e teria mais chances de brotar. Mas não rolou essa rega. E eu passei alguns anos da vida achando que essa minha vontade era uma bobagem, uma viagem da minha cabeça. E parei de pensar nisso. Até que aos 15, justamente na fase que a gente é obrigado a pensar no "que vai ser quando crescer", eu lembrei da tal sementinha seca. Mas eu não queria olhar pra ela, não. Só que todas as outras direções que eu olhava me pareciam erradas. Foi bem nessa época que tal semente recebeu a primeira gotinha de água. Apareceu na Malhação a Miuki, que era vivida pela Dani Suzuki. A presença dela ali, o fato eu ver uma menina também com características fenotípicas amarelas, trabalhando na tv como atriz, me mostrou que era possível sim. Que talvez fosse ser difícil, mas que se ela tinha conseguido, talvez eu tivesse alguma chance.

Num bate papo com a minha mãe, no carro, que eu lembro até hoje, eu lembro de ponderar essa possibilidade, e ela me disse: Se você nunca tentar, você nunca vai saber. E eu resolvi tentar.

Anos depois e graças a Deus, eu tentei e consegui construir uma carreira com trabalhos na TV, Teatro e Cinema. E ainda estou construindo. E foi num dos meus papéis mais relevantes, numa das novelas mais criticadas pela falta de representatividade que eu, por estar ali, também me tornei a gota da semente de sonho de uma outra menina, que quando me contou o que eu causei nela só pelo simples fato de estar ali, me emocionou e me arrepiou.

Em 2016, ela estava terminando a faculdade, e questionando se ia mesmo conseguir viver da profissão que tinha escolhido. Daí ela liga a TV na Globo e estou eu lá. E ela pela primeira vez, consegue se ver ali, consegue enxergar possibilidade em algo que antes, parecia praticamente impossível. E na frente da TV ela fecha os olhos, medita, e se imagina também ocupando aquele espaço, aquele terreno que parecia tão inatingível. E pede que se for pra acontecer, aconteça.

Alguns meses depois - e 66 anos depois da estreia da primeira novela no Brasil - ela se torna a primeira protagonista amarela da história da TV brasileira. Essa garota é a Ana Hikari, que é uma das protagonistas de "Malhação - Viva a diferença.".

Quando ela me contou essa história, num dia em que almoçamos juntas, eu fiquei pensando caraca, que foda! Que lindo! Se a representatividade, ainda é minúscula perto do que espero que seja e, ainda assim, teve papel tão importante, gerando um encadeamento de inspirações. Eu vendo a Dani, e acreditando ser possível, eu ocupando meu espaço e inspirando a Ana a acreditar que também poderia estar ali. Imagina a dimensão que esta corrente de inspiração não teria se mais pessoas que representam uma minoria fossem vistas nos filmes, séries, novelas, e revistas por aí? E aí podemos sair desse micro, e ir pro macro. Pensar no impacto social positivo do aumento da representatividade de pessoas indígenas, pretas, LGBTQIA+, pessoas que tenham alguma deficiência, e todos os outros tipos de pessoas que não são vistas nas mídias.

Voltando a olhar para o micro, sempre reparei que somos tão poucas. Quis saber quantas somos. E foi nessa pesquisa que eu me deparei com estes números, que faço questão de recapitular: Desde a estréia da primeira novela no Brasil (em 1951) demorou 35 anos até houvesse a presença de uma atriz brasileira amarela na TV (em 1986), e depois desse primeiro surgimento, demorou mais 31 anos para que surgisse a primeira protagonista amarela (em 2017).

Podemos dizer que é um avanço em direção à representatividade, só que o ritmo que esse avanço tem acontecido é muito lento. Desde a primeira novela até este primeiro protagonismo vivido por uma amarela se passaram 66 anos, é muito tempo, é uma vida.

Aí estamos falando apenas de novelas, mas aí eu pergunto, quantas vezes vocês já viram mulheres amarelas estrelando grandes campanhas? Principalmente aqui no Brasil. Seja pra vender margarina, ou produtos para o cabelo?

Há algum tempo a publicidade tem tentado colocar a diversidade brasileira nas telas e páginas das campanhas, mas ainda assim, quantas vezes vemos, brasileiras-asiáticas-amarelas fazendo parte deste quadro? Quase nunca.

Nas campanhas de produtos para cabelo das 3 maiores marcas do nicho que estão no ar agora, nenhuma mulher amarela foi escalada.

Será que isso acontece por que até hoje nós não somos vistas e vistos como brasileiros?

Por mais bizarro que isso seja. Afinal, já são 112 anos da presença de imigrantes japoneses aqui, por exemplo. E mais tempo ainda da presença dos primeiros amarelos a pisar em solo brasileiro. Pouca gente sabe, mas os primeiros chineses a chegaram no Brasil praticamente 100 anos antes dos japoneses, fruto do "tráfico de coolies", que significa 'carregadores de fardos', com significado pejorativo associado a trabalhador escravizado. Mais de 500 chineses foram raptados do seu país e trazidos para cá pra cultivarem chá no Rio de Janeiro. Existem muitas histórias que não foram contadas pra gente. Como por exemplo, o fato de que, durante a Era Vargas, aqui no Brasil, chegou a ter dezenas de campos de concentração de trabalho forçado para onde levavam Alemães, Italianos e Japoneses. Em Tomé Açu, no Pará, e na Granja Canguiri, em Curitiba, eram os campos com maior concentração de japoneses e os mais emblemáticos. Crianças brancas participavam de concursos onde os vencedores iam até a Granja Canguiri alimentar com palha, não a animais, e sim a crianças japonesas ou descendentes. As escolas japonesas foram fechadas e/ou queimadas. Os livros apreendidos. Jornais que traziam noticias do Japão interditados. Era proibido falar japonês.

Um amigo meu me contou que seu bisavô desistiu de ir trabalhar na cidade, pois toda vez que ele saia de casa pra ir para o trabalho, ele era preso, e passava a noite na cadeia, sem ter feito absolutamente nada. Simplesmente por ser japonês. Outra história que eu só vim conhecer agora é que, em Santos, no dia 8 de julho de 1943 cerca de 9 mil japoneses e descendentes tiveram que abandonar suas casas, pertences, tudo, sendo expulsos de Santos em poucas horas. Eles tiveram que pegar o que coubesse numa malinha de mão e se dirigir à estação de trem, largar tudo pra trás, e ir para onde quer que fosse determinado pelo exército. Os que não fizessem, seriam forçados a fazer, ou seriam presos. A avó deste mesmo amigo, tinha 9 ou 10 anos nesta época, e carrega, até hoje, muitas lembranças dessa expulsão. Outra história não contada são os linchamentos públicos em Oswaldo Cruz. E uma prova por escrito de o quanto os japoneses eram indesejados aqui é o que a Historiadora Rosana Kimura relata de um trecho do Jornal Diário de Curitiba: "Que raça será a nossa no futuro se nos saturarmos de imigração japonesa? Ou eles não se radicam no Brasil pelos laços de família e serão então um imenso aparelho sugador, transportando para a pátria deles riquezas consideráveis ou cruzam, imprimindo na nossa raça os característicos deles, que com franqueza, não são grandemente apreciáveis."

Mesmo não sendo "apreciáveis", mesmo com todas estas tentativas de silenciamento e de negação das nossas características amarelas na constituição daquilo que viria a ser o "povo brasileiro", mesmo com todas essas histórias que não nos foram contadas, uma coisa é inegável, é um fato: o Brasil tem a maior colônia de japoneses e descendentes do mundo. São mais de 1,6 milhão de japoneses e descendentes vivendo no Brasil. É uma galera! São gerações e gerações de descendentes que, muitas vezes, de japoneses mesmo não tem mais quase nada, só algumas características físicas, às vezes, o sobrenome, e o apelido que, para muitos, desagrada. Se você ainda faz isso, chama alguém de: japa?de china? eu quero te contar que grande parte não gosta de ter seu nome substituído por uma nacionalidade que nem é a nacionalidade dele, ou dela. É algo que faz com que essa pessoa se sinta não-brasileiro ou não-brasileira, ou seja, não pertencente ao próprio país onde nasceu.

Eu já senti bem na pele o que é não ser considerada brasileira, e também não ser considerada "japonesa". Por ser atriz, tive que lidar muito com a questão da imagem. Quantas vezes cheguei em testes e me diziam, "Ah, mas você não é brasileira." Ou me chamavam para testes onde queriam asiáticas e diziam: "Ah, mas você não é bem asiática. A gente queria alguém mais japonesa."

Quantas vezes eu já não ouvi "o seu olho não é tão puxado, né? Que pena. Daí, não serve."; ou "nossa, mas como você é alta pra japonesa, tem até corpo de brasileira.", e o pior de tudo: "nossa, até que ela é bonita pra ser japonesa." e "É difícil ver uma japonesa bonita.".

As pessoas falam isso sem se dar conta do horror que é essa combinação de palavras.

Bom, mas a questão é que eu sou mesmo esta pluralidade étnico-racial, assim como muitas outras brasileiras. Eu demorei pra me aceitar e ser feliz sendo exatamente quem sou. Mas hoje eu vejo a beleza que há em mim. E convido vocês a olharem o que é plural como algo bom, bonito, interessante, potente e rico.

Quando me convidaram para falar aqui hoje, me disseram que o tema era "Essência".

Não tem pergunta que esteja mais ligada à nossa essência do que esta: "Quem sou eu?". E não tem como você enxergar a essência de uma pessoa, se você não conseguir olhar pra quem ela é além da aparência. A gente é muito mais do que isso. Mas quando a aparência parece ser um obstáculo, ou algo que você não aceita, fica difícil você conseguir enxergar a essência. Se você não valoriza a sua ancestralidade, fica mais complicado ainda entender a sua própria identidade.

"Quem sou eu" é uma pergunta que fazemos e faremos milhares de vezes ao longo da vida. E, muitas vezes, temos respostas completamente diferentes, contraditórias, instigantes ou confusas, dependendo da fase que estamos vivendo, dependendo de quem somos naquele momento.

Na construção desta resposta eu descobri: quem eu não sou, o que eu não quero, e como eu quero que seja o meu futuro e de outras pessoas. E quando falo futuro falo do 1 segundo que sucede o agora. Não dá pra esperar mais 3 décadas para ter um avanço em relação a dimensão da representatividade, por exemplo. E como eu vou tentar agir em direção a esta mudança? Negando situações que reforcem o preconceito e o estereótipo, lutando para mais espaço para a pluralidade, usando do meu lugar de privilégio para poder contar histórias em que pessoas amarelas se sintam devidamente representadas, e levantando, sempre que possível, esta discussão.

Ainda buscando a resposta de "Quem sou eu?", é comum surgir outra pergunta: "Quem eu gostaria de ser?"

Quem são as pessoas, as histórias que me inspiram?

Quando eu vejo a Sandra Oh arrasando na série Killing Eve, ganhando o Globo de Ouro pela segunda vez, e sendo a primeira mulher amarela a apresentar este evento de prestigio, ou sendo indicada ao Emmy de melhor atriz novamente este ano; quando eu vejo a Awkafina ganhar o prêmio de melhor atriz no Globo de Ouro; ou quando eu vejo o filme coreano "Parasita" ganhar o Oscar, isso bate em mim, eu fico feliz de um jeito diferente, por que eu vejo a representatividade étnico-racial conquistando seu espaço.

Estes prêmios e sucesso são um sinal de que existe uma mudança acontecendo. E ela é urgente.

Eu criei coragem de falar sobre esse tema aqui hoje quando percebi que falando sobre mim, eu estaria trazendo uma visão de mundo diferente da ainda dominante hoje. Dessa vez a diversidade estaria ganhando espaço. Pelo menos, não seria mais uma vez a hegemonia branca sendo ouvida. E passei a acreditar que se grupos étnicos, sociais, ou de gênero, que se sentem não pertencentes ou oprimidos, se unirem, cada um ocupando o seu lugar de fala, um sendo empático, responsável e solidário com o outro, a gente vai conseguir fazer com que esta pluralidade, que tentaram e ainda tentam silenciar, seja ouvida, vista, e sentida. Que as pessoas realmente vejam que a diversidade só nos enriquece enquanto humanidade

A primeira frase que eu disse pra vocês hoje foi:

"Vocês conseguem me ver? Me ouvir?"

Parafraseando Monique Evelle, hoje eu sei que eu "falava pra dentro" não por ser naturalmente tímida, e sim por me sentir intimidada.

Hoje, eu sou mais uma voz. Que vai se juntar a outra voz, e a outra e outra e aumentar esse coro, plural, que grita em uníssono para chegar em todos aqueles que já se sentiram não-vistos, não-representados, não-pertencentes:

Você tem uma voz. E ela precisa ser ouvida.